arte e contemplação

Denis Aparecido Mendes Pereira

A palavra CONTEMPLAÇÃO provém do latim “contemplatio”. A partícula “con” denota intensidade e “templum”, que significa um pedaço de terra destinado aos auspícios ou um edifício de adoração. A raiz desta palavra pode derivar de duas bases: proto-indo-europeia “tem” (cortar) – um lugar “recortado para” ou “temp” (estender) um espaço livre à frente do altar. “Contemplatio” foi a palavra escolhida pela língua latina para traduzir a palavra grega θεωρία (theoria). (Silva, 2022)

A Filosofia Grega, já em seus primórdios, aborda a questão da Contemplação, de modo especial um de seus maiores representantes Aristóteles. Contudo, um dos primeiros filósofos da antiguidade que estabelece uma relação entre a Arte e a Contemplação foi Plotino (século III). Para Plotino, a arte que se encontra no mundo sensível tem seu arquétipo no Intelecto, de modo que o artista participa da forma da arte usando a sua faculdade intelectiva. Para Plotino, a alma é mais perfeita que o objeto fabricado pelo artista, pois ontologicamente a alma é maior hierarquicamente do que o objeto, isso se dá, porque a alma está mais próxima ao Uno, e quanto mais próximo ao Uno maior a perfeição. Com isso, o artista, pela via da contemplação, acessa o inteligível sem a mediação da natureza, com essa concepção se supera a ideia de Platão de arte enquanto “mimese” da natureza. (Fernandes, 2022)

“Assim, os homens, quando a contemplação se debilita neles, passam à ação, que é uma sombra da contemplação e da razão. Incapazes de dedicar-se à contemplação pela debilidade de sua alma, não podem alcançar o objeto da contemplação e ficar plenos dela, ainda quando desejem vê-Ia, e lançam-se à ação, para ver com os olhos o que não podem ver com a inteligência. Quando fabricam objetos é porque querem ver e contemplar (aquilo igual ao objeto da contemplação intelectual). E quando se propõem a trabalhar enquanto podem, é porque querem vê-lo e fazer os outros o sentirem” (Plotino, Enéada Ill. 8-1).

Na Filosofia Medieval, a Contemplação vai ser um objeto recorrente entre os filósofos, sobretudo em um dos maiores exponentes da Filosofia Medieval: São Tomás de Aquino. Para São Tomás os sentidos não exprimem a totalidade do belo, mas se deve investigar o fundamento da beleza no ser. É nesta linha de pensamento que se analisa a arte (ars) e o belo (pulchrum). A estética tomista não despreza a apreciação sensível, mas é pela apreciação feita pelos sentidos que se pode chegar à contemplação da beleza do ser. Porém, a contemplação da beleza do ser não é o fim, mas conforme se vai transcendo o olhar físico, se aproxima do olhar metafísico, que por sua vez vai projetar a contemplação da beleza para um olhar místico, em que a máxima beleza se dá na caridade e no próprio ato contemplativo da razão, sendo que maior beleza é a obra que pela contemplação mais aproxime o ser humano de Deus.  (Faitanin, 2022)

“A contemplação não é outra coisa que o olhar amoroso fixado na beleza de Deus” ( SANTO TOMÁS DE AQUINO, STh. II-II, q180, a3, c.).

A partir da modernidade, a Filosofia da Arte vai ganhando novos olhares e adquirindo novos conceitos, sobretudo na estética de Kant. Porém, alguns filósofos ainda vão pensar a arte fazendo menção a contemplação, dentre estes filósofos se destaca Arthur Schopenhauer (1788–1860). Em sua obra “O Mundo como Vontade e como Representação” (1819), que aborda sua visão ética e estética, um termo que ganhará relevância na sua concepção estética é a Contemplação. Para o filósofo alemão, a arte, na metafísica do belo, é um dos pontos mais alto do seu pensamento, pois para o mesmo a arte proporciona uma experiência de alívio para o estado do sofrimento, de modo que a contemplação estética é vista como uma forma privilegiada de conhecimento, do conhecimento das Ideias (formas atemporais, imutáveis e permanente, sendo anterior ao princípio da razão; este conceito de Schopenhauer se aproxima do conceito trabalhado na filosofia de Platão). Para Schopenhauer, a contemplação estética é um movimento completamente desinteressado e objetivo, e não se submete ao querer ou à vontade. É na contemplação desinteressada das ideias que o sujeito se eleva ao estado puro do conhecimento, causando o desinteresse do mundo como vontade e representação, pois alcançou a liberdade metafísica e ontológica. Na sua concepção ontológica ou metafísica da arte, Schopenhauer não estabelece uma distinção significativa entre o conhecimento artístico e da criação da obra de arte do ponto de vista do Gênio (aquele que tem a capacidade de apreender nos objetos a sua Ideia correspondente, em uma contemplação puramente objetiva, na qual todas as relações das coisas com a própria Vontade somem da consciência). Para o filósofo alemão, a obra de arte está subordinada à contemplação artística. (Nunes, 2022)

“Uma vez que o corpo não participa dessa forma de conhecimento, na qual se exige o abandono dos interesses subjetivos, é só desse modo que o espírito toma uma direção objetiva contraposta à direção subjetiva. Isto define a contemplação. O olhar do homem no qual vive e atua o gênio o distingue facilmente, visto que, ao mesmo tempo vivaz e firme porta o caráter da intuição, da contemplação… ao contrário o olhar do homem comum… faz visível o verdadeiro oposto da contemplação, o espionar”
(Schopenhauer, O Mundo como Vontade e como Representação, p. 257)

De acordo com Paes (2022) convém ressaltar que na Idade Média a arte era uma forma de materialização do sagrado, do religioso e da divindade, de modo que o artista ficava como que anônimo. Já no Renascimento o foco será na genialidade do artista como criador e a obra de arte assume uma espécie de áurea, que faz com que o espectador da obra experimente como que um estase, causado por um sentimento que a obra transmite em quem a olhe com atenção, que transcende a própria materialidade da produção artística, bem como de sua mensagem, quase se assemelha a uma experiência com o divino, que neste período vai ser substituído pela representação artística. Em ambos períodos da História da Arte, mesmo que o fim da contemplação se distinga, no primeiro a Deus e no segundo a representação artística, o caráter transcendente ainda é um fator relevante para compreensão estética. Contudo, com o advento do Capitalismo, a lógica do mercado vai como que assumir um protagonismo estético, e segundo Paes (2022), a autonomia da arte ficará refém da dinâmica do mercado. Ao falar sobre a influência estética causada com o avanço do capitalismo e sua predominância no cenário contemporâneo, Lipovetsky e Serroy (2022) cunham o termo “transestética”, que mostra o impacto do Capitalismo na produção artística:

“No tempo da estetização dos mercados de consumo, o capitalismo artista multiplica os estilos, as tendências, os espetáculos, os locais da arte; lança continuamente novas modas em todos os setores e cria em grande escala o sonho, o imaginário, as emoções; artealiza o domínio da vida cotidiana no exato momento em que a arte contemporânea, por sua vez, está empenhada num vasto processo de “desdefinição”. É um universo de superabundância ou de inflação estética que se molda diante dos nossos olhos: um mundo transestético, uma espécie de hiperarte, em que a arte se infiltra nas indústrias, em todos os interstícios do comércio e da vida comum. O domínio do estilo e da emoção se converte ao regime híper: isso não quer dizer beleza perfeita e consumada, mas generalização das estratégias estéticas com finalidade mercantil em todos os setores das indústrias de consumo. Uma hiperarte também na medida em que não simboliza mais um cosmos, não expressa mais narrativas transcendentes, não é mais a linguagem de uma classe social, mas funciona como estratégia de marketing, valorização distrativa, jogos de sedução sempre renovados para captar os desejos do neoconsumidor hedonista e aumentar o faturamento das marcas. Eis-nos no estágio estratégico e mercantil da estetização do mundo. Depois da arte-para-os-deuses, da arte-para-ospríncipes e da arte-pela-arte, triunfa agora a arte-para-o-mercado

(Lipovetsky e Serroy, A Estetização do mundo: viver na era do capitalismo artista. p. 17)

Mesmo que na Modernidade e na Contemporaneidade a Contemplação não tenha ganhado relevância no debate e na produção artística, alguns artistas persistem em imprimir em suas obras o caráter transcendente, dentre estes artistas cabe destacar o cineasta russo Andrei Tarkovsky (1932-1986). Mesmo que tenha dirigido uma pequena quantidade de filmes, sobretudo em comparação com outros diretores do século XX, Tarkovsky com seus sete longas-metragens deixou uma contribuição importantíssima para o Cinema Mundial. Seu estilo diverge substancialmente dos seus contemporâneos soviéticos, que ainda eram regidos pela estética imposta pelo Realismo Soviético de Stalin. Em suas películas Tarkovsky dá vasão para seu impulso criativo, sendo sua temática geralmente orientada para uma visão de futuro apocalíptica, marcada pelo caráter destruidor, como se nota no cenário distópico do filme “Stalker” (1979) e na ameaça bélica que permeia a história do filme “O Sacrifício” (1986). Outro elemento relevante na produção cinematográfica deste cineasta soviético é a presença constante de pinturas, seja em quadros ou em livros manuseados pelos personagens. Um dos pontos altos de seu estilo cinematográfico é a sua plasticidade permeada de superfícies, que requer do observador o sentido tátil, sendo que por muitas vezes as imagens são reduzidas a puras texturas, o que faz lembrar do abstracionismo, de modo a explorar a materialidade das coisas acompanhada de uma inevitável postura de contemplação dos objetos, o que dá nas suas obras um destaque ao gênero da natureza morta. Com isso, é inegável a presença da dimensão contemplativa nos filmes de Tarkovsky, pois o mesmo não esconde sua inclinação para o sagrado, para o impalpável e invisível. (Souza, 2022)

 “A função específica da arte não é, como comumente se imagina, expor idéias, difundir concepções ou servir de exemplo. O objetivo da arte é preparar uma pessoa para a morte, arar e cultivar sua alma, tornando-a capaz de voltar-se para o bem. Ao se emocionar com uma obra-prima, uma pessoa começa a ouvir em si própria aquele mesmo chamado da verdade que levou o artista a criá-la. Quando se estabelece uma ligação entre a obra e o seu espectador, este vivência uma comoção espiritual sublime e purificadora. Dentro dessa aura que liga as obras-primas e o público, os melhores aspectos das nossas almas dão-se a conhecer, e ansiámos por sua liberação. Nesses momentos, reconhecemos e descobrimos a nós mesmos, chegando às profundidades insondáveis do nosso próprio potencial e às últimas instâncias de nossas emoções”
(Andrei Tarkovsky, Esculpir o tempo. p. 49)

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

http://elcv.art.br/santoandre/biblioteca/_em_portugues/tarkovski_andrei_esculpir_o_tempo.pdf

http://lounge.obviousmag.org/zoom_nas_visceras/2014/12/a-luz-instantanea-de-andrey-tarkovsky-1.html

https://www.dougwestendorp.com/thoughts-on-contemplative-art/the-characteristics-of-contemplative-art

https://www.royalacademy.org.uk/article/magazine-art-of-contemplation-mindfulness#:~:text=Reflecting%20on%20a%20work%20of,pinned%20down%2C%20or%20somehow%20defined

https://www.pensador.com/frase/NzE/

https://lume.ufrgs.br/handle/10183/219487

https://www.academia.edu/36638420/A_PAISAGEM_COMO_SUPORTE_DE_REPRESENTA%C3%87%C3%83O_CINEMATOGR%C3%81FICA_NA_OBRA_DE_ANDREI_TARKOVSKY