Tropicália

Maite Di Risio Martinez Gobbi

De acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o vocábulo “tropicalismo”, surgiu em 1968, em sua acepção número 2, voltada à música, correspondendo a “movimento de um grupo de compositores baianos liderados por Caetano Veloso (1942-) e Gilberto Gil (1942-), que resultou numa síntese assistemática de alguns elementos da brasilidade, em sintonia com as manifestações estéticas e culturais da mesma época (1967-1968)”. Ainda nesse dicionário, na acepção número 3, por extensão, em Artes Plásticas, Cinema e Teatro,  verifica-se: “esse mesmo movimento estendido às artes plásticas (p.ex., Hélio Oiticica), ao teatro (José Celso Martinez Correia)  e ao cinema (Glauber Rocha)”. Etimologicamente, o vocábulo surge da união de tropical + –ismo. Tropical apresenta-se com seis acepções: 1 relativo ou pertencente ao(s) trópico(s); 2 situado entre os trópicos (diz-se de região); 3 que pertence à zona tórrida, a zona terrestre localizada entre os trópicos, de clima, quente, úmido e chuvoso (diz-se de região); 4 muito quente (diz-se de temperatura), abrasador; 5 tecido leve de lã, linho ou seda, geralmente usado no vestuário masculino; 6 roupa feita com esse tecido. Já trop(o) é elemento de composição, antepositivo, do grego trópos,ou’ direção (de um duto, canal etc); maneira, modo, feição; modo, melodia, tom, canto; maneira de exprimir, estilo, figura de palavras, tropo; maneira de pensar e agir, costumes, hábitos, conduta, caráter, sentimentos.

Considerando essa etimologia, pode-se constatar que o tropicalismo correspondeu a um movimento artístico de expressão, voltado às artes, em geral, em oposição às influências da esquerda nas produções culturais, uma vez que para os tropicalistas nosso país tinha que ser soberano, valorizando suas raízes, numa espécie de utopia, de ideologia. O tropicalismo compartilhava alguns elementos da visão sobre a cultura e a política predominante nos anos 60, porém com um significado diferente. “O tropicalismo construiu uma versão alternativa  das relações entre cultura e política, disputando com a esquerda no seu próprio terreno; o que explica a reação explosiva da esquerda frente à produção tropicalista, e a não menos explosiva resposta a essa reação.” [1].

“O conflito entre a esquerda e os tropicalistas era qualitativamente diferente do conflito da mesma esquerda com artistas ‘alienados’, como os músicos ‘da Jovem Guarda’. Enquanto as canções da Jovem Guarda falavam de experiências alheias ao universo da esquerda – conflitos sentimentais, passeios automobilísticos etc, utilizando formas artísticas execradas por ela – o rock, as canções tropicalistas falavam da ‘realidade brasileira’, tão reclamada pela esquerda, mas ofereciam uma visão diferente dessa realidade, utilizando, como a Jovem Guarda, formas artísticas consideradas descaracterizadoras da cultura brasileira. Para a esquerda, os tropicalistas seriam uma espécie de ‘agentes do inimigo’ infiltrados para destruir por dentro o ‘movimento revolucionário’.” [2].

Em 1967, Hélio Oiticica apresentou uma mostra que recebeu o título de Tropicália, montada em 1967, em uma exposição no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Tempos depois, Caetano Veloso compôs uma música que recebeu o mesmo nome — outro marco para o movimento. “Tropicália foi o nome com que o artista Hélio Oiticica batizou uma instalação no MAM-RJ em 1967: uma espécie de labirinto que fazia alusão às favelas e aos trópicos, contendo elementos como araras, parangolés e aparelho de televisão.” [3] Marcaram a exposição o contato não contemplativo, o espectador transformado em participador e as proposições em vez de peças. O imaginário plástico de Hélio Oiticica era extremamente sonoro. Para os tropicalistas o imaginário sonoro era extremamente plástico, devido à estreita ligação que eles mantiveram com artistas plásticos de vanguarda.

Disponível em: https://images.app.goo.gl/iTQfZ4widpeh5CVFA. Acesso em mai. 2022.

“Certos artistas criadores, quando se expressam, podem comunicar uma verdade muito mais total do que todas as teorias que são construídas.” (Hélio Oiticica)

No 3º Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record de São Paulo, ocorrido em outubro de 1967, duas músicas acabaram destoando dos padrões da época: Alegria, Alegria, acompanhada pelo grupo de rock argentino Beat Boys,  e Domingo no Parque, . A primeira, de  Caetano Veloso, era uma marchinha que não trazia caráter trágico nem agressivo, devido à narração do cotidiano de jovens de classe média. “Assim, Alegria, Alegria apresenta uma das marcas que iriam definir a atividade dos tropicalistas: uma relação entre fruição estética e crítica social, em que esta se desloca do tema para os processos construtivos. Na linha da modernidade, esta tendência cool das canções tropicalistas trata o social sem o pathos então vigente. Nesta primeira música tropicalista, surpreendem-se – no procedimento da enumeração caótica e de colagem, tanto na letra quanto no arranjo – indicações certeiras do processo de desconstrução a que o tropicalismo vai submeter a tradição musical, a ideologia do desenvolvimento e o nacionalismo populista.” [4].

Domingo no parque, de Gilberto Gil, acompanhado pelos Mutantes, apresenta complexidade construtiva, com ênfase no arranjo que ele e Rogério Duprat realizaram, com uma concepção cinematográfica.

No que diz respeito ao cinema e ao teatro, destacaram-se Terra em Transe (1967), filme de Glauber Rocha, e a peça O rei da vela, dirigida por Zé Celso, e que foi dedicada ao filme do Glauber Rocha, Terra em Transe,  trazendo à tona a crítica do Oswald de Andrade. “O Rei da Vela é uma peça de teatro escrita em 1933 por Oswald de Andrade, um dos principais nomes do Modernismo brasileiro, e publicada em 1937. Contudo, só foi encenada pela primeira vez trinta anos após sua publicação e refletiu, por meio da visão do autor, a sociedade brasileira de sua época. Escrita no embalo da crise financeira de 1929, a obra aborda a valorização da indústria na década de 30 e a ‘modernização’ do país que se estabeleceu com o Governo Vargas, tratando da junção – ou submissão – da aristocracia decadente com a burguesia em ascensão para servir ao capital estrangeiro. A peça se divide em três atos e segue a estrutura do teatro tradicional.” [5]

O objetivo dos tropicalistas era desarticular as ideologias, promovendo uma revolução estética e comportamental na cultura brasileira. Como participaram de um dos períodos mais criativos da sociedade, os tropicalistas assumiram as contradições da modernidade. Assim, o cafona e o humor são práticas construtivas do tropicalismo, que fez uso de elementos da linguagem pop, ingerindo tendências comportamentais e artísticas da época, para expressar algo novo. Em entrevista, Caetano Veloso afirmou: “Eu e Gil estávamos fervilhando de novas ideias. Havíamos passado um bom tempo tentando aprender a gramática da nova linguagem que usaríamos, e queríamos testar nossas ideias, junto ao público. Trabalhávamos noite adentro, juntamente com Torquato Neto, Gal, Rogério Duprat e outros. Ao mesmo tempo, mantínhamos contatos com artistas de outros campos, como Glauber Rocha, José Celso Martinez, Hélio Oiticica e Rubens Gerchman. Dessa mistura toda nasceu o tropicalismo, essa tentativa de superar nosso subdesenvolvimento partindo exatamente do elemento ‘cafona’ da nossa cultura, fundindo ao que houvesse de mais avançado industrialmente, como as guitarras e as roupas de plástico. Não posso negar o que já  li, nem posso esquecer onde vivo.” [6]

“Em junho de 1968, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Torquato Neto, Capinam, Tom Zé, Nara Leão, Gal Costa, Os Mutantes e Rogério Duprat lançam o álbum Tropicália ou Panis et Circencis — uma espécie de manifesto musical do movimento. Nessa obra, as principais referências dão-se como uma mescla entre a música popular brasileira, o rock’n roll, o Concretismo e a cultura pop.” [7] O álbum coletivo foi lançado no dia 7 de agosto de 1968, na boate Dancing Avenida, no Rio.

Disponível em: https://images.app.goo.gl/DH6caBJP7bgo1hHF6. Acesso em mai. 2022.

https://youtu.be/gfs9DC4GNr0 (Panis et circenses)

O tropicalismo realizou, no Brasil, a autonomia da canção, estabelecendo-a como um objeto verdadeiramente artístico. Efetuou a síntese de música e poesia. A canção tropicalista também se singulariza por integrar em sua forma e apresentação recursos não musicais que ampliavam as possibilidades do arranjo, vocalização e apresentação. Caetano, por exemplo, no lançamento do disco Tropicália, travestiu-se, usando boá cor-de-rosa. Esses efeitos enfatizavam o efeito humor e cafona, essenciais para esse impacto que os tropicalistas queriam provocar por meio da paródia e do deboche. Corpo, voz, roupa, letra, dança e música tornaram-se códigos. No encontro de melodia e texto, o tropicalismo inovou a música brasileira, por meio de letras de canções inovadoras, utilizando-se de  jogos de linguagem, e aproximando-se da poesia dos concretistas. 

“Duarte refere-se também à proximidade dos tropicalistas com a poesia concreta, em particular à relação entre Augusto de Campos e Caetano Veloso. Se de fato houve uma ‘tropicaliança com os concretos’ em ‘prol de uma arte brasileira de invenção’, nas expressões de Augusto de Campos, essa confluência não foi, no entanto, destituída de conflitos. Na autobiografia Verdade tropical, de 1997, por exemplo, Caetano Veloso relembra que era cobrado por Glauber Rocha e Augusto de Campos por sua ‘excessiva tolerância ou generosidade com a produção nacional’, incluindo-se nela a ‘grandiloquência do bel canto’; de tal modo que ‘sob este aspecto’, conclui Duarte, ‘os tropicalistas’ foram ‘mais generosos com a tradição do que os concretistas’. Não se pode, além disso, como mostrou Favaretto, afirmar que ‘os tropicalistas teriam posto em prática o projeto dos concretos’, mas ‘sim, que estes reconheceram no trabalho dos tropicalistas coincidências com o trabalho que realizavam já há uma década – o da revisão crítica da literatura e crítica literária brasileira’.Apesar da afirmação de Augusto de Campos de que os ‘tropicalistas empregaram processos de composição próximos aos dos poetas concretos’, é possível constatar, por meio da ‘análise das letras e das canções tropicalistas’, um emprego discreto dos procedimentos típicos da poesia concreta’, tais como ‘sintaxe não discursiva, verbi-voco-visualidade, concisão vocabular’, por parte dos músicos.”[8]

O Tropicalismo buscava múltiplos diálogos com o pensamento social brasileiro, com a cultura de massa,  principalmente. Esse movimento reforçava a emergência de uma cultura pop, nascendo de uma crise de representação do projeto nacional popular. O tropicalismo almejava, assim,  uma restauração da música popular brasileira.  Foi um momento em que as artes, a música, as artes plásticas, as artes do cinema e do teatro tiveram uma convergência, possibilitando que as pessoas repensassem o Brasil em relação aos outros países. O tropicalismo teve uma comunhão com as outras artes.  Foi uma retomada crítica do nacionalismo não político,  mas literário, remetendo à Semana de 22.

Com o exílio de Gilberto Gil e Caetano Veloso, a Tropicália chega ao fim, transformando, de maneira ímpar, a música popular brasileira, uma vez que os tropicalistas, grandes expoentes da arte brasileira de vanguarda, deixaram seu legado e marcaram nossa história.

NOTAS
[1] Coelho p. 162

[2] Ibid. p. 163.

[3]  https://bit.ly/39cD1iM  

[4] Favaretto p. 21.

[5] https://bit.ly/3xb8zOg

[6] Favaretto p. 27 e p. 28.

[7] https://bit.ly/3ziGWFA

[8] Fabrinni p. 10

OBRAS CITADAS

FAVARETTO, Celso. Tropicália: alegoria, alegria. 3ª edição. São Paulo: Ateliê Editorial, 2000. P. 21

Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.

COELHO, Cláudio N. P. A tropicália: cultura e política nos anos 60. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 1(2): 159-176, 2. Sem. 1989.

FABRINNI, Ricardo. A atualidade da tropicália. Revista Viso. Nº 23, jul-dez/2018. P. 10